sexta-feira, 25 de novembro de 2011


       






  

 

Precisamos de uma esquerda forte, realista
Por Francisco Assis


Zapatero percebeu que se tinha metido num labirinto sem
saída e retirou-se. Como agora se constata, revelou lucidez

Neste tempo de crise, os espanhóis votaram de acordo com as previsões apontadas pelos estudos de opinião e concederam à direita a sua mais expressiva vitória em trinta anos de democracia. Os socialistas, por contraponto, averbaram a sua mais pesada derrota. De nada lhes valeu terem apresentado como candidato à Presidência do Governo aquele que é, provavelmente, o melhor político de Espanha, Alfredo Pérez Rubalcaba. As coisas são o que são e o PSOE perdeu estas eleições num já remoto dia de Maio de 2010 quando, regressado de uma cimeira europeia em Bruxelas, o primeiro-ministro Zapatero anunciou, a um país atónito, um draconiano e imprevisto plano de austeridade que contradizia toda a sua retórica encantatória anterior e pulverizava grande parte da sua credibilidade política. Nesse dia, a Espanha mudou. Um cultor empedernido do optimismo antropológico não está autorizado a anunciar más notícias. Zapatero percebeu que se tinha metido num labirinto sem saída e optou por retirar-se. Como agora se constata, revelou lucidez nessa dolorosa decisão. Mas desde essa ocasião que o destino do seu partido estava sentenciado. Só faltava marcar a hora da execução. Foi no domingo passado, em milhares de assembleias de voto, espalhadas por toda a Espanha.

Da noite eleitoral destacam-se duas imagens naturalmente contrastantes - de um lado, a exibição do charme quase indiscreto de uma certa burguesia espanhola fustigando com cânticos do velho nacionalismo "espanholista" a esmagadora vitória do PP e aclamando o novo presidente do conselho, o austero e cinzento, mas aparentemente sensato e equilibrado, Mariano Rajoy; do outro, a imensa tristeza das poucas pessoas que acompanhavam a solidão do candidato vencido na hora do reconhecimento da derrota. Entre esses dois mundos parecia ressurgir a linha de fractura entre as duas irreconciliáveis Espanhas, se bem que três décadas de democracia e uma profunda inserção no contexto político e cultural europeu tenham, certamente, atenuado tão trágica oposição que marcou o século XX.

Recordo ainda o olhar e as palavras de Rubalcaba naquela noite, naquele exacto momento em que, do lugar da sua derrota, se dirigiu à Espanha inteira, sem intermediação, nem desculpas, reconhecendo com dignidade o desaire, assumindo com galhardia o compromisso de uma oposição séria, leal e construtiva. Em que pensou e o que sentiria verdadeiramente Rubalcaba enquanto proferia as palavras que o dever lhe impunha? Divagaria, certamente, sobre o seu destino pessoal, o real e o hipotético, o pretérito e o futuro. Demasiado experiente para pensar em ingratidão, excessivamente inteligente para apelar à ideia de incompreensão, suficientemente espanhol para compreender que um homem corre sempre o risco de ter um desencontro quase trágico com a sua própria história, terá, possivelmente, sentido a nostalgia da grande carreira científica que o seu génio precoce prenunciava e a melancolia de uma outra Espanha futura que ficará, por muito tempo, por cumprir. Há na derrota política uma única volúpia - a exaltação de uma certa liberdade reencontrada. O PSOE vai precisar muito dela e Rubalcaba bem pode ser ainda o artífice principal do muito que há a fazer com ela. Se assim acontecer, esta derrota será apenas mais um momento e não o epílogo do percurso público deste homem brilhante e sério.

Mas, mais importante que o destino de um homem, mesmo quando se trata de uma personalidade de excepção, é o futuro de um projecto e estes resultados recolocam com pertinência o problema da progressiva erosão eleitoral da esquerda democrática europeia. Vinte e poucos anos após a queda do Muro e o desmantelamento do império soviético, assistimos à materialização de uma hegemonia política e eleitoral da direita liberal e conservadora que governa em quase todos os países europeus. Depois do fim do comunismo, enquanto doutrina inspiradora e apelativa, estaremos a assistir ao inexorável declínio da social-democracia europeia, remetida, por vontade dos povos, para um estatuto de subalternidade política e eleitoral e, como tal, condenada a um papel menor na definição da vontade colectiva de cada país em particular e da Europa em geral? Entre o enaltecimento do liberalismo económico, a adesão ao conservadorismo social e a apologia da razão tecnocrática, que futuro se antevê para as forças políticas identificadas com o pensamento proveniente da vasta tradição social-democrata? A questão é complexa e não pode ser resolvida com leviandade.

Há alguns anos atrás, um dos grandes intelectuais europeus da segunda metade do séc. XX, Ralf Dahrendorf, publicou um pequeno mas denso opúsculo a que sugestivamente deu o nome de A Quadratura do Círculo e onde manifestava a sua profunda inquietação com o futuro da social-democracia europeia que ele considerava ter estado historicamente assente na articulação bem sucedida do tríptico do bem-estar económico, da coesão social e da liberdade política. Dahrendorf era um bom e velho liberal da melhor estirpe, discípulo directo da Karl Popper, grande defensor do mercado, da livre iniciativa individual e das sociedades abertas. Mas isso não o induzia ao culto do neoliberalismo puro e duro; pelo contrário, ele achava que os povos europeus tinham, na sequência da 2.ª Guerra Mundial, construído, nas suas diferentes declinações nacionais, um modelo de organização política, económica e social que assegurava a prosperidade e a justiça, num clima de liberdade cívica e política. E reconhecia a importância do grande contributo histórico da tradição social-democrata para a consumação desse modelo. Perante os perigos que já então espreitavam e que, com a sua grande agudeza analítica, antevia, reagia com inquietação e receio.

Infelizmente, o curso ulterior da História tem vindo a dar-lhe razão. A Europa enfrenta hoje um sério problema de bem-estar económico, dada a ameaça de recessão prolongada que afecta muitos dos estados-membros da União, vê a coesão das suas sociedades fortemente questionada e não pode ter certezas quanto ao destino das suas próprias liberdades públicas. Ainda há dias, um dos mais eminentes colunistas do Financial Times, Martin Wolff, lembrava que foi a austeridade radical e não a hiper-inflação que conduziu Hitler ao poder nos anos trinta na Alemanha. Estamos perante um cenário ameaçador que não devemos ignorar.

Diante de tal estado de coisas, o problema da perda de influência da social-democracia adquiriu especial relevância. Nunca como hoje foi tão imprescindível a afirmação de uma linha de orientação política que se oponha ao modelo liberal-conservador, sem cair na tentação da crítica radical e simplista ou do contra-projecto utópico e inviável. Precisamos de uma esquerda forte, realista, capaz de se adaptar às circunstâncias sem se deixar esmagar por elas.

Para Dahrendorf a principal ameaça ao equilíbrio social-democrata provinha das inúmeras transformações que uma globalização económica e financeira desregulada provocava na repartição do poder mundial e na estruturação interna das várias sociedades nacionais. Em grande parte, tinha razão e muitos dos problemas que enfrentámos decorrem da incapacidade de a União Europeia ter agido e funcionado como um ecrã protector do designado modelo da economia social do mercado face à desmedida pressão que as forças de um mercado mundial mal regulado sobre ela exercem. Mas julgo que é preciso ir mais longe.

Paradoxalmente, muitos das grandes conquistas emancipatórias dos anos sessenta proporcionaram a emergência de comportamentos que prejudicam agora a intervenção política da esquerda democrática. Concentremo-nos em dois ou três exemplos - a consagração da autonomia individual conduziu à explosão de modelos e comportamentos narcísicos que atomizaram a sociedade e prejudicaram a noção de vinculação social; o advento da cultura de massas gerou o triunfo de uma vulgaridade que perturba a verdadeira criatividade; o culto do igualitarismo degenerou na apologia de um diferencialismo acrítico. Tudo isto, comprovadamente, prejudica a afirmação de um bloco social e político que consiga associar, em torno de um projecto de sociedade, os sectores mais inovadores e dinâmicos com os grupos sociais em queda e carecidos de protecção estatal mais incisiva.

Por outro lado, a esquerda tende a recorrer a uma espécie de discurso da denúncia, que erra na escolha dos adversários e perde de vista as novas causas que podem dar um novo sentido à sua intervenção política. A forma como uma grande parte da esquerda democrática, na sua ânsia de ataque ao capitalismo, resvala para um discurso antiliberal, não pode deixar de suscitar as maiores apreensões. Também aqui há um vasto caminho a percorrer.

Em suma, estamos perante a necessidade de refundação do pensamento político e económico de uma corrente de pensamento e de acção política imprescindível para a afirmação de uma ideia de Europa que corresponda a uma forma de civilização. Por aqui vai passar grande parte do debate político dos próximos anos. Será tema para próximos artigos. Deputado do PS










1 comentário:

  1. Hoje é também uma data histórica da democracia portuguesa , 25 de Novembro. O artigo publicado por Francisco Assis, no JP, de que eu aqui publico, cheio de legítimas preocupações, sobre o futuro da esquerda social-democrata , pós keynesiana,( isto já sou eu que acrescento), estando de acordo na generalidade com a sua narrativa, quero saudá-lo pela sua ousadia, e vontade expressa em continuar, este longo e profundo debate e combate para contribuir para uma refundação da esquerda forte, realista.

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